Poéticas da Experiência

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Poéticas da luta e políticas de articulação

Aiano Bemfica1 e Luís Flores2

A vida organizada em torno dos filmes” é uma definição amplamente aceita para a cinefilia tradicional. Mas nesse momento, quando o mundo está em ebulição e o planeta à beira de uma catástrofe, tal concepção de amor ao cinema soa irresponsável, até narcisista. O que precisamos agora é de uma cinefilia que esteja em pleno contato com seu momento presente global – que o acompanhe, que se mova e viaje com ele. Não importa o quão ardente e apaixonado seja nosso amor por esse meio, o mundo é maior e vastamente mais importante do que o cinema (Girish Shambu, 2019)3.

“Decía el Viejo Antonio que la libertad tenía qué ver también con el oído, la palabra y la mirada. Que la libertad era que no tuviéramos miedo a la mirada y a la palabra del otro, del diferente. Pero también que no tuviéramos miedo de ser mirados y escuchados por los otros. Y luego agregó que el miedo se podía oler, y que abajo y arriba ese miedo despedía un olor diferente. Dijo además que la libertad no estaba en un lugar, sino que había que hacerla, construirla en colectivo. Que, sobre todo, no se podía hacer sobre el miedo del otro que, aunque diferente, es como nosotros (Subcomandante Marcos, 2006)4.

Era ainda a primeira metade de 2020, quando começamos a pensar formas de elaborar uma curadoria para integrar o site do Poéticas da Experiência. Estávamos recém-submersos nos impactos e nas transformações que o contexto de pandemia, moldado pela gestão nefasta do Governo Federal, impôs a todas e todos. Assim como muitas pessoas e coletivos mundo afora, tentávamos entender de que maneira responder ao novo cenário, de que modos reorganizar nossas vidas e nossas possibilidades de existir no mundo. Parecia um desafio tremendo continuar fazendo coisas concretas, que sempre nos foram prementes e fundamentais: con-viver, celebrar encontros, partilhar ideias e ações, pensar e construir, coletivamente, um outro mundo possível, um mundo outro. Foi no bojo dessa busca que surgiu, dentro do nosso grupo de pesquisa, a ideia de criar uma curadoria relacionada às nossas pesquisas e inquietações.

Passados mais de dois anos do nosso impulso inicial, quando enfim conseguimos dar corpo à proposta que aqui compartilhamos, o Brasil já acumula mais de 663 mil mortos pela COVID-19 (11% das mortes no mundo, em um país que tem apenas 3% da população mundial), e ultrapassa a marca de 30 milhões de pessoas contaminadas — representando cerca de 6% dos dados globais de contágio. Consequências, vale repetir, da política genocida do capitalismo, do rentismo e do militarismo, forças que se agrupam em torno de Bolsonaro, impulsionada pelo discurso negacionista que agrava o quadro social de um país que sofre, ademais, com o empobrecimento e com o aumento da carestia.

O experimento que movemos (e que nos moveu), entranhado no desejo de restabelecer os laços e os encontros de luta no presente, foi o de inverter um pouco a chave daquilo que se entende, convencionalmente, por curadoria artística, isto é, a seleção especializada de determinados objetos estéticos a partir de um prisma subjetivo mais focalizado. Em vez disso, quisemos experimentar a curadoria como um locus de encontro (provisório e restrito, é certo) para a combinação de lutas que se fazem inadiáveis, mesmo diante do fim do mundo, pois brotam e crescem no limiar improvável de incontáveis mundos que acabam e ressurgem diariamente. Se uma crise sanitária em escala global é cenário novo para os que vivemos neste século, são muitas outras as crises que vêm violando, desde tempos remotos, diversos grupos, territórios e formas de existência. Desde o despojo como prática colonial, ao abandono histórico das periferias urbanas, passando pelas violências sistêmicas em todos os campos da existência; em um mundo que se quer organizado pelos de cima, como o nosso, não se pode amar, pensar, cultuar, ocupar, partilhar ou lutar de maneira livre, sem sofrer com os vilipêndios do poder estabelecido e seus discursos pretensiosamente hegemônicos.

A imposição, muitas vezes, é de ordem estética, e vai moldando silenciosamente — pelas vias do streaming, da Netflix, da Amazon, da HBO, do velho império de Hollywood reeditado — as possibilidades de existir debaixo do céu, modelando, normatizando, homogeneizando as manifestações plurais da vida sobre a terra. Onde uns querem impor, pela velha força da violência e da exploração, o consenso do que é e do que se forma, representando e reduzindo o tecido social a fórmulas comerciais (e comercializáveis) de política e de liberdade, nosso intuito foi o de escutar aqueles que lutam e resistem, os que defendem a vida, em âmbitos muito concretos.

Por meio “da escuta, da palavra e do olhar”, como fala o Viejo Antonio, em uma das epígrafes que abrem este texto, a busca pela liberdade vem sendo construída e a história transformada por movimentos que, ainda que limitados em escala, são articulados “a partir da consciência organizada de grupos e coletivos que se conhecem e se reconhecem mutuamente, abaixo e à esquerda, e que constroem outra política” (Subcomandante Marcos, 2006, p. 8). Concordando com Girish Shambu que “o mundo é maior e vastamente mais importante do que o cinema”, nos pareceu decisivo reinventar o processo curatorial como um lugar não apenas de reflexão e construção de sentido, a partir de uma montagem entre obras, mas de articulação de lutas e pensamentos emancipatórios, de modo a tecer diálogos com pessoas que cotidianamente constroem possibilidades para superar as crises de “um mundo em ebulição” em um “planeta à beira de uma catástrofe”. Talvez como resposta ao nosso absoluto — ou relativo — isolamento, uma das muitas consequências do período pandêmico (que partilhamos), passamos a ver a curadoria também como território de articulação política, reconhecendo-a como sítio de encontro para diferentes pensamentos, convocando e atravessando obras que, juntas, impulsionam formas outras de construção de escutas, palavras e olhares. Convidamos, então, lutadoras e lutadores populares, lideranças ativas em alguns dos processos mais importantes de continuidade e reinvenção do presente, para construírem, conosco, não um programa curatorial rigidamente delimitado, mas uma rede aberta de filmes e pensamentos. Às/aos convidadas/os, propusemos que indicassem uma ou mais obras e, a partir delas, gravassem um comentário que estabelecesse possíveis relações entre o(s) filme(s) e o mundo.

Não propomos, aqui, o cinema que decorre simplesmente dos códigos do bom gosto padronizado, e muito menos o cinema que advém da normatização histórica, ideológica e comercial das manifestações imagéticas que atravessam o nosso mundo. Queremos, isso sim, compartilhar um cinema vivo, diverso, pulsante, um cinema cuja poética expresse algo da vontade inalienável de corpos e olhares viventes, em movimento insubmisso com o sopro das lutas de nosso tempo, um cinema que não se faça como experiência estética cômoda e condicionada, mas, antes, como atmosfera — meio — pulsante de imagens que fortalecem as formas de emancipação e de articulação política.


NOTAS

1 Mestre em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência, vinculado à linha Pragmáticas da Imagem, é também graduado em Antropologia Social pela mesma universidade. Paralelo ao seu percurso acadêmico, é cineasta e militante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas e realiza filmes intimamente ligados aos processos políticos contemporâneos. Em um trabalho que busca aproximar os dois eixos de sua trajetória, se dedica a pesquisar intersecções entre as lutas sociais e a produção/circulação de imagens realizadas no bojo destes processos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7764526174770889

2 Doutor em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, com pesquisa dedicada ao cineasta alemão Harun Farocki. Mestre em Cinema pelo Programa de Pós-graduação em Artes da EBA-UFMG, com dissertação dedicada ao cineasta francês Max Ophuls, com o título Max Ophuls, mestre de cerimônias: mise en scène reflexiva em La ronde e Lola Montès. Graduado em Ciência da Computação pelo DCC/UFMG. Professor, educador, curador e pesquisador de cinema, atua também como ensaísta e tradutor. Organizador dos livros O Cinema de Trinh T. Minh-ha (2015) e O Cinema de Rithy Panh (2013). Curador das retrospectivas dos cineastas Rithy Panh (CCBB, 2013) e Trinh T. Minh-ha (Caixa Cultural, 2015) no Brasil. Curador do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte nos anos de 2015, 2016 e 2017. Curador do forumdoc.bh no ano de 2015. Desde 2019, é curador do Cinecipó — Festival do Filme Insurgente, desde 2019. Desde 2020, é curador da Lona – Mostra Cinemas e Territórios, uma iniciativa do MLB – Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas. Participa do projeto artístico e educativo Coletivo de Cinema, voltado para a inclusão do audiovisual nas escolas públicas. Organiza o programa educativo gratuito Cinema — Sensação de Mundo, destinado ao público infantil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5896277282332288

3 Passagem do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu, traduzido por Ingá Patriota e publicada na Revista Cinética em 20 de abril de 2020. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/nova/traducao-de-por-uma-nova-cinefilia-girish-shambu/

4 Passagem de “Tocar el Verde – Calendário e Geografia de la Destrucción”, terceira parte do livro “Ni centro, ni periferia” que reúne falas do vocero zapatista Subcomandante Marcos (2006, p.33).

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Convidada: Capitã Pedrina (Capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira, MG)
Filme: Café com Canela (Ary Rosa e Glenda Inácio, 2017)

https://vimeo.com/704145553/15ebb341ac

“Café com Canela” (Ary Rosa e Glenda Inácio, 2017, 102min)

O filme ficou disponível neste post até o dia 18/5/22. Agradecemos à diretora e ao diretor, às/aos produtoras/es e às/aos distribuidoras/es pela janela de exibição generosa!

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Convidado: Pai Sidney – Tat’etu Odesidoji
Filme: Besouro (João Daniel Tikhomiroff, 2009)

https://vimeo.com/704150307/7b19e6ebc8

“Besouro” (João Daniel Tikhomiroff, 2009, 95min)

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Convidado: Gabriel Lopo (Jornalista e Produtor Cultural)
Filmes: A luta do povo (Renato Tapajós, 1980) e Pandelivery (Guimel Salgado e Antônio Matos, 2020)

https://vimeo.com/704151941/c99782d95b

“A Luta do Povo” (Renato Tapajós, 1980, 30min)

“Pandelivery” (Guimel Salgado e Antônio Matos, 2020, 15min)

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Convidada: Letícia Oliveira (MAB)
Filme: Mineiros (Amanda Dias, 2020) e O Povo Constrói (2020)

https://vimeo.com/704152328/57553eee90

Mineiros (Amanda Dias, 2020, 23′)

O Povo Constrói (2020, 13′)

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Convidado: Frei Gilvander (Comunicador e Assessor Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT)
Filme: Mataram Irmã Dorothy (Daniel Junge, 2008)

https://vimeo.com/704156839/8003f32a3e

“Mataram Irmã Dorothy” (Daniel Junge, 2008, 100min)

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Convidadxs: Coletivo Olhares (Im)Possíveis
Filmes: “Ano 2020” e “Contramonumento 1”

https://vimeo.com/704158045

“Ano 2020” (Coletivo Olhares (Im)Possíveis, 2021, 16min)

https://vimeo.com/704255176/d241593038

“Contramonumento #1” (Coletivo Olhares (Im)Possíveis, 2022, 10min)

https://vimeo.com/704237226/d7503ddebd

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Convidado: Edinho Vieira (Cineasta e Coordenador Nacional do Movimento de Lua nos Bairros, Vilas e Favelas – MLB)
Filme: A vizinhança do tigre (Affonso Uchoa, 2014)

https://vimeo.com/704162211/2bd6549c93

“A Vizinhança do Tigre” (Affonso Uchoa, 2014, 95min)Clique aqui para alugar
(Caso alguém deseje obter um link de acesso individual, gratuitamente, fazer contato com Luís Flores — 031 9-8487-5413)

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AGRADECIMENTOS

André Brasil, Arthur Medrado, Capitã Pedrina, Cardes Amâncio, Coletivo Olhares (Im)Possíveis, Daniel Queiroz, Edinho Vieira, Ester Antonieta, Frei Gilvander, Gabriel Lopo, Izabella Bontempo, Letícia Oliveira, Letícia Péret, Pai Sidney – Tat’etu Odesidoji

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