Frame do vídeo “Leona Assassina Vingativa no Congresso Nacional, de Victor de la Rocque (2014)
Por Álvaro Andrade
Se apenas recentemente Felipe Neto, a maior personalidade da internet brasileira, passou a usar sua popularidade para promover pautas progressistas em que acredita, desde 2012, quando tinha apenas 13 anos, a artista paraense Leona Vingativa já tentava fazer uso de sua visibilidade nas redes com esse objetivo. Logo, não é de se espantar que, nestas eleições de 2020, ela esteja concorrendo a uma vaga na câmara municipal de Belém, em uma candidatura coletiva. O momento não poderia ser mais oportuno para (re)ver e pensar algumas de suas aparições performáticas em vídeo que têm como alvo a política institucional. Todos lançados e disponíveis no YouTube, os primeiros vídeos são de 2012, e o último, deste ano, é a primeira peça audiovisual de sua campanha.
O trabalho de Vingativa sempre foi carregado de política, principalmente de políticas do corpo, expressão com a qual me refiro, grosso modo, às relações que se estabelecem pela presença dos corpos nos espaços públicos, sejam estes reais ou virtuais. Para além da compreensão de que não há um fora na política, ainda mais especificamente, refiro-me à política que se dá pelo tensionamento que um corpo provoca ao frequentar, de modo subversivo, espaços regidos por normas hegemônicas. Já em Leona Assassina Vingativa (2009), vídeo com o qual ela inicia sua trajetória como pessoa pública, sua presença disruptiva salta aos olhos. Nele, Vingativa tem apenas 11 anos, é uma criança negra, de um bairro empobrecido de Belém (PA), e encarna, contracenando com o amigo adolescente Paulo Colucci (Aleijada Hipócrita), uma mulher poderosa num típico embate dos capítulos finais de uma telenovela.
Leona Assassina Vingativa (2009)
A paródia é precisa no texto e na estrutura dramática da cena, mas há algo que escapa. O cenário e o figurino são mínimos, quase inexistentes, expondo a condição real da vida de quem a atua. Enquanto fabulam outras existências possíveis, certa feminilidade é performada até explodir no corpo de Vingativa. A energia excede em muito o registro telenovelesco, para além inclusive da paródia, e ultrapassa também os limites da brincadeira infantil que origina a encenação. O campo é atravessado por risadas e outros elementos vindos do extracampo, como pessoas que aparecem de soslaio nos cantos do plano, e uma força parece pulsar entre ficção e realidade. Elas se divertem enquanto atuam, e o resultado é magnético e chocante. Sua vitalidade alegre, por um lado, e o realismo ruidoso da técnica, do cenário e da caracterização que expõem corpo e contexto, por outro, sugerem em negativo os limites das normas hegemônicas: sejam sociais, referentes ao gênero, ao lugar da infância, à classe etc; sejam do audiovisual, em sua assepsia impositiva, cristalizada e disfarçada como único padrão técnico aceitável. Tudo o que vira cinzas na radicalidade incendiária da performance.
Nessa seleção que proponho, a política é também essa, porém potencializada por uma dobra. São vídeos explicitamente políticos porque se direcionam ao campo da política como o senso comum a reconhece – que envolve partidos, eleições, mandatos etc – e que aqui proponho chamarmos de “a política dos políticos”. Afinal de contas, em nosso país, o mundo da política institucional está tão ou mais sequestrado do que o das imagens pelo sujeito hegemônico (homem, branco, cis, de classes médias e altas). Para se ter uma ideia, olhando apenas para o gênero, o Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países. A presença performática de Vingativa nesses vídeos, portanto, encara um duplo embate, pois tenta agir em um meio ainda mais dominado pelo oponente. Esta paródia de Marcelo Adnet ilustra bem o modelo normativo ao qual me refiro.
Marcelo Adnet – Propaganda eleitoral gratuita (2014)
Como assim, uma assassina vingativa engajada politicamente em causas progressistas?
Nos seis vídeos listados e comentados abaixo, em imagens e sons em que se permitem sombras e ruídos, a artista contrapõe a esse modelo asséptico (na linguagem) e ascético (na tentativa de construir a imagem de heróis humildes e livres de qualquer contradição, sombra ou opacidade), o erotismo e a sensualidade como principais potências. Como afirma Audre Lorde (1984):
“Há tentativas frequentes de se equiparar a pornografia e o erotismo, dois usos diametralmente opostos do sexual. Por causa de tais tentativas, se tornou recorrente separar o espiritual (psíquico e emocional) do político, vê-los como contraditórios ou antitéticos. “Como assim, uma revolucionária poética, um traficante de armas que medita?”. Da mesma forma, temos tentado separar o espiritual do erótico, e assim temos reduzido o espiritual a um mundo de afetos insípidos, do asceta que deseja sentir o nada. Mas nada está mais distante da verdade. Porque a posição ascética é uma do mais grandioso medo, da mais extrema imobilidade”.
Seus primeiros trabalhos explicitamente políticos são de 2012, quando a Vingativa era apenas uma adolescente. Em três pequenos vídeos, ela aparece apoiando a candidata a vereadora DJ Gadá. Os registros sugerem seu envolvimento precoce com a política, bem como uma compreensão de comunidade (no caso, a LGBTQIA+) que tem estado presente em boa parte de seu trabalho. A preocupação com o coletivo e com a representatividade é verbalizada por ela no terceiro vídeo: “Eu tô cansada de olhar na câmera e só ver héteros. Tá na hora de mudar”. Pelo viés do gênero, Vingativa chama a atenção para o sujeito dominante na política institucional e expressa o interesse de que grupos pelos quais se sente representada ocupem e transformem esses espaços, para que se possa ver a diferença.
A mudança que ela tenta promover na câmara é prefigurada na imagem, que também difere do habitual. A luminosidade insípida comum aos vídeos de campanha, frequentemente gravados de dia, aqui é substituída pelas sombras noturnas. Simbolicamente, a assunção das sombras sugere um outro lugar de enunciação, que contrapõe à luz que esconde e controla uma penumbra que revela e permite. A mensagem verbal, porém, é direta e sublinhada pelo dedo indicador apontado a quem assiste. O gesto, que remete à iconografia hegemônica de convocação à luta e é lembrado sobretudo na figura inquisidora do Tio Sam (I want you!), nestes vídeos deixa de servir à violência heroica e patriarcal ao ser apropriado e atualizado por uma jovem de convicções democráticas, que nos convoca a “eleger a primeira lésbica vereadora em Belém”, como se lê na descrição do YouTube.
Leonna Assassina e Vingativa Eleições (2012)
Vingativa volta a se dirigir explicitamente ao campo da política institucional em dois vídeos de 2014. Em “Leona nas eleições – eu não vou pagar essa conta”, ela faz um “gato” de energia com a justificativa de que Simão Jatene, governador do Pará à época e candidato à reeleição pelo PSDB, “vendeu a Celpa [Centrais Elétricas do Pará] por 400 milhões, e a energia subiu 34%”. A malandragem surge como sabedoria contra-hegemônica, uma contravenção para se esquivar de um processo privatista que encarece sobretudo a vida de quem, como ela, vive em áreas precarizadas. Mais uma vez, enquanto a imagem é ruidosa e a postura bem-humorada, os dados são precisos e a mensagem é direta e se expressa desde o título.
Leona nas eleições – eu não vou pagar essa conta (2014)
Em “Leona Assassina Vingativa no Congresso Nacional”, por sua vez, assistimos ao desbunde do corpo no espaço “sagrado” e asséptico de Brasília. O vídeo começa parodiando nos créditos iniciais a grandiloquência da política dos políticos, até que a ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, some em fade out para a entrada da dançante Frescáh no Círio, de Vingativa. Ela e Colucci chegam com as imagens e instauram a política do corpo livre, sensual e místico: a chuva que cai é a de Belém, fazendo do gramado do Congresso uma continuação de sua Av. Brasil, no bairro do Jurunas. Água, corpo e palavra conectam os espaços, enquanto elas dançam, se jogam e se divertem declarando amor e apoio a Dilma, a quem se dirigem aos gritos como “Afrodite”, “deusa do amor”, e alguém que não é “contra as bichas, é a favor”.
“A dicotomia entre o espiritual e o político é igualmente falsa, resultante de uma atenção displicente de nosso conhecimento erótico. Porque a ponte que os conecta é formada pelo erótico – o sensual –, aquelas expressões físicas, emocionais e psíquicas do que há de mais profundo e forte e farto dentro de cada uma de nós, a ser compartilhado: as paixões do amor, em seus mais fundos significados.” (LORDE, 1984)
Dita para a câmera com alegria e deboche, a mensagem é ao mesmo tempo engraçada, contundente e séria. Ao ressaltar que o apoio não se deve ao Bolsa Família, pois “existem outros valores”, explicitam ainda a consciência de como certa elite avalia o voto de esquerda das camadas precarizadas.
Leona Assassina Vingativa no Congresso Nacional (2014)
No vídeo deste ano, “Lançamento da Pré-candidatura Bancada Delas à Câmara de Vereadoras/es de Belém” (2020), é Vingativa quem está candidata. A estética alia certos aspectos da linguagem padrão da propaganda política, com o uso de drone, da câmera lenta, dos espaços abertos e bem iluminados e de trilha sonora reflexiva. Porém não se pode desprezar a relação entre corpos, lugares e discursos veiculados. Candidatas pelo PCdoB, a socióloga Eliana Silva, a ativista Victoria Santos e a sindicalista Roze Mafra falam de sua origem periférica e de sua luta política dentro das instituições, enquanto caminham por lugares que representam suas trajetórias. Silva, que é presidente da União da Juventude Socialista (UJS-PA), e está na universidade pública; Santos, do Movimento Feminino de Arquibancada (MFA-PA), em um estádio de futebol; já Mafra, presidente do Sindicato das Trabalhadoras/es Domésticas do Pará (SINTDAC-PA), caminha pelo centro da cidade. Esta terceira escolha de cenário é importante, pois desloca a trabalhadora doméstica do espaço privado da casa para o espaço público da rua, lugar por excelência da política no sentido aqui proposto.
Em um trecho de sua fala, o que Silva diz se conecta com o que as imagens tentam construir nessa relação corpo x espaço: “entendemos que ocupar a política é uma necessidade”. A compreensão de que ocupar a política é ocupar os espaços contém em si a importância da visibilidade pública e, logo, também das imagens. Nesse sentido, ao dar a ver mulheres periféricas ocupando com serena altivez lugares que a princípio repelem sua presença como protagonistas, o vídeo não opera uma mera replicação de normas. Ele incorpora a linguagem padrão e a subverte a seu favor, e não o contrário. Ocupar os espaços mas também as formas do audiovisual hegemônico com corpos e discursos não habituais, postos em cena em suas singularidades, subverte expectativas. Não por acaso, meu olhar viciado pelas normas, ciente de que se tratava de uma candidatura de mulheres, estranhou à primeira vista o uso da imagem imponente do monumental estádio Mangueirão, para então ser desarmado pela narração de Victoria Santos a respeito de sua luta política como líder de torcida. Preconceitos são criados pela hegemonia através dessa moldagem de expectativas, e quebrá-las é um modo de fazer política com as imagens.
Por fim, é a vez de Leona entrar em cena. O sobrenome Vingativa foi suprimido do material de campanha, talvez por suporem que sua conotação negativa seria inadequada ao marketing da política institucional. A entrada da artista na política dos políticos, afinal, não se daria sem tensionar ambos lados. Em seu discurso, estão presentes preocupações já cantadas em sua obra musical, temas que dialogam e outros que passam ao largo de uma identificação mais evidente: a preservação do meio ambiente e o estímulo do uso de preservativos, a necessidade de cuidar da população idosa e a defesa da vida de pessoas trans. Enquanto as demais candidatas caminham plácidas, Leona, de vestido amarelo esvoaçante e com um enorme leque na mão, desfila com passos firmes. No Jurunas, bairro onde nasceu e se criou, ela cumprimenta e tira fotos com mulheres e crianças nas portas de suas casas, são vizinhas e fãs. Tal qual no vídeo de 2012, emblematicamente, também é noite. Como uma gata parda, Leona segue infiltrando-se no mundo das imagens hegemônicas, despindo-se de rótulos e remodelando horizontes.
Lançamento da Pré-candidatura Bancada Delas à Câmara de Vereadoras/es de Belém (2020)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Á. A. A liberdade de Vingativa: performance, performatividade e gesto. 146p. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social. PPGCOM/UFMG. Belo Horizonte, 2019.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia 306 – la ed. – Buenos Aires : Paidós, 2006.
LORDE, Audre. Use Of the erotic: The erotic as power. Tradução: Tatiana Nascimento In: Sister Outsider: essays and speeches. 1 ed. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 53 – 59