Poéticas da Experiência

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Fight the power: breve história do videoclipe político

Por Eduardo de Jesus e Luis Felipe Flores

O videoclipe, como gênero e formato, tem uma origem híbrida e difusa. A herança dos filmes musicais hollywoodianos e da videoarte produzida entre as décadas de 1960 e 1970, o registro de performances musicais ao vivo, os primeiros longas metragens dos Beatles como A hard day´s night (1964) e Help (1965), o concerto de Elvis Presley para a rede de TV estadunidense NBC (1968), entre outros, formaram ao longo do tempo alguns dos pontos da enorme trama de origem do videoclipe. Agrupando os diversos modos na relação entre som e imagem, o videoclipe abarca desde o registro mais direto da performance de artistas até elaborações autorais e experimentações visuais de toda ordem.

A entrada no ar da MTV americana, no início da década de 1980, de alguma forma, definiu certo contorno – mutante e dinâmico – ao formato videoclipe que começava a articular suas origens e heranças em novos arranjos. Dali em diante, o videoclipe se tornaria uma peça central nas trajetórias comerciais dos artistas e bandas, na construção de seus semblantes midiáticos ou como forma de posicionamento no imenso e diversificado mercado do entretenimento. Atualmente nas tramas pós-massivas das redes o videoclipe assume novas lógicas e potências com outras formas de produção e circulação.

A princípio o videoclipe era uma forma simples de ampliar a visibilidade dos artistas, dentro do circuito midiático massivo. No entanto, foram inúmeras as alterações e contaminações do universo dos clipes com a cultura midiática global. Se num primeiro momento, tratava-se de um formato despretensioso e ligado mais exclusivamente ao entretenimento e ao posicionamento comercial, aos poucos, foi ganhando novos contornos e estratégias. Na década de 1990, por exemplo, acabou se tornando um formato que permitiu a experimentação audiovisual em produções autorais que atingiram audiências amplas e heterogêneas, em aproximações com o cinema e a arte contemporânea.

Ao longo do tempo, uma das importantes mutações do videoclipe foi a gradativa aproximação com questões políticas e sociais que, ampliando a herança das músicas de protesto, passou a usar as imagens como forma de engajamento político, posicionamento e visibilidade de muitas causas.

Indicamos aqui alguns videoclipes que mostram certo panorama – inesgotável – das relações entre videoclipes e engajamento político. Longe de ser conclusiva, dada a extensão do fenômeno, essa lista de videoclipes nos mostra estratégias estéticas, discursivas e narrativas com nítidos posicionamentos políticos.  Os clipes se posicionam diante de questões sociais, políticas, étnico-raciais, identitárias, de gênero e também na elaboração de outras representações, entre inúmeras outras questões. Uma das linhas fortes entre os videoclipes que indicamos é a luta contra o racismo.

A MTV americana percebeu (capturou?) tardiamente essa vertente e em 2011 incluiu “melhor vídeo com mensagem social” entre as categorias de premiação no MTV Awards.  Em  2017, essa categoria foi retomada com outro nome “Melhor luta contra o sistema” (Best fight against the system).

Toda essa movimentação política mais intensa, que vemos atualmente em torno do videoclipe traz vestígios históricos que apresentamos aqui junto com desdobramentos contemporâneos. A lista poderia ser imensa, mas escolhemos nos deter primeiramente em alguns videoclipes mais antigos que já traziam as questões políticas e sociais de seus períodos históricos e outros mais atuais, buscando escapar dos mais recentes com ampla visibilidade.

Fight the power (Public Enemy) – Spike Lee, 1989

O grupo de rap americano Public Enemy trouxe novo vigor a esse gênero musical ampliando seu engajamento político em discursos diretos e contundentes, especialmente direcionados contra o racismo e a violência, sobretudo policial, contra negras e negros nos Estados Unidos. Existem muitas versões do clipe da canção. A versão integral, indisponível na rede, trazia imagens da Marcha de Washington (1963) que reuniu cerca de 200.000 pessoas para protestar contra o racismo. Nesta versão reduzida vemos imagens de um protesto semelhante no Brooklyn, em Nova York, com uma vigorosa apresentação da banda.

Eju Orendive (Brô Mc’s) – CUFA-MS, 2010

As formas como os aparatos e dispositivos audiovisuais e midiáticos vem sendo usados pelos muitos grupos indígenas nos últimos tempos tem gerado reposicionamentos estéticos e políticos profícuos.  Novas representações, mais complexas e alinhadas a questões políticas importantes, como a demarcação das terras e a preservação de formas culturais tradicionais, marcam os videoclipes do grupo de rap Brô Mc´s formado por jovens indígenas Guarani e Kaiowá da reserva Jaguapiru (Dourados, MS).

I’ve got you under my skin (Neneh Cherry) – Jean-Baptiste Mondino, 1990

Em plena explosão da Aids, em 1990, e com toda onda de preconceito e segregação que a doença provocou, a organização americana Red and Hot produziu um disco com versões de músicas de Cole Porter (1891 – 1964) de modo a levantar fundos para a pesquisa contra a AIDS. Eram vendidos o disco e um fita VHS com os videoclipes.

Um dos clipes que se destacou nesse contexto foi a versão de Neneh Cherry para o clássico I´ve got under my skin. O clipe causou certo estranhamento, porque, além de trazer pessoas andróginas em situações ambíguas e afetuosas, incluía um contundente rap em torno da luta contra a AIDS. Cherry ainda incluiu a frase “compartilhe o amor e não a agulha” que fecha o clipe, o que foi compreendido por grupos conservadores como um estímulo ao uso de drogas injetáveis.

Lalá (Karol Conka) – Vera Egito e Camila Cornelsen, 2017

Abordando o sexo oral pela ótica feminina quase como um divertido e funcional manual de instruções, Karol Conka lança mão de sugestivas imagens e uma letra direta para tratar do tema. Temáticas sexuais quando tratadas diretamente por mulheres quase sempre são desqualificadas pelo mundo machista, o que não foi diferente à época de lançamento da música e do videoclipe. Trata-se um gesto político de empoderamento feminino e de defesa da igualdade.   

Boa Esperança (Emicida) – Katia Lund e João Wainer, 2015

O clipe de Emicida tem uma estrutura narrativa que mais parece um curta-metragem denunciando de forma radical as violências sofridas por negras e negros do Brasil, especialmente no trabalho doméstico. Lund já havia dirigido o contundente clipe de Minha alma (A Paz que eu não quero) (O Rappa,1999) e com Emicida parece seguir a mesma direção.

Sonne statt Reagan (Joseph Beuys e Die Desserteure) – Joseph Beuys, 1982

Apesar de simples no uso de recursos visuais, o registro da performance musical da banda Die Desserteure e do artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) chama atenção. A longa e radical trajetória artística de Beuys empunhou inúmeras lutas políticas em suas obras entre intervenções, performances e instalações, se coloca em outro meio lançando mão dos recursos típicos da cultura pop.

Beuys aponta os enormes problemas da gestão de Ronald Reagan (1981 e 1985) na Casa Branca, como a intervenção militar na guerra civil de El Salvador e o desenvolvimento de armas nucleares. No refrão da canção, nos diz “Nós queremos sol ao contrário de Reagan” jogando com os sentidos da proximidade fonética entre as palavras Reagan e Regen (chuva, em alemão).

A carne (Elza Soares) – 2002

A música de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti lançada no disco Moro no Brasil (1998) do grupo Farofa Carioca foi imortalizada na voz de Elza Soares, em duas versões (2002 e 2017). O clipe da primeira versão da música (do disco “Do cóccix até o pescoço”, 2002) nos mostra – entre cenas fortes em relação ao racismo estrutural no Brasil e uma performance eletrizante de Elza Soares – a presença negra em sua diversidade.

Boca de Lobo (Criolo) – Denis Cisma, 2019

Uma super-produção misturando técnicas de animação com cenas que, muitas vezes, fazem alusão a acontecimentos recentes da política brasileira (a morte de Marielle, o caso Geddel e as questões do governo Temer). Animais peçonhentos no universo das cidades em fúria. Violento e furioso, o clipe traz inúmeras referências em suas imagens e foi contemplado em muitas premiações de videoclipes.

Frescáh no Círio (Leona Vingativa) – Paulo Colucci, 2015

Leona Vingativa Asssassina é uma persona construída na força dos agenciamentos sócio-técnicos e midiáticos das redes sociais. Vinda do Jurunas, periferia de Belém do Pará, Leona faz uma paródia do sucesso do Daft Punk. Em meio à performance de Leona, as imagens incluem o Pastor evangélico Marcos Feliciano e alusões à suposta cura gay, em meio a referências diretas e muito divertidas ao Círio de Nazaré, importante festa religiosa de Belém. Da letra da canção, que insere elementos da linguagem do universo trans, aos “atracks” de Leona, da aparição da periferia aos figurinos, o clipe é puro descontrole e subversão.  

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